"Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos."
B.S.



quarta-feira, 17 de março de 2010

[o menino da escada]


era a incógnita pura aquele olhar que ele me lançara. parecia uma mistura de sensações tão perto da homogeneidade, que isolá-las uma a uma seria de uma dificuldade tremenda, me restavam somente as hipóteses.
o menino estava ali, deitado no meio da escadaria de uma ruazinha qualquer. estava de tal forma jogado que parecia nao pertencer a lugar nenhum, a familia nenhuma, só pertencia a ele mesmo e a toda aquela fusão de sentimentos que guardava para si. provável que nem ele mesmo sabia diferenciá-los, por isso se encontrava tão fora do mundo naquele momento.
a cada degrau que subia, mais eu nao sabia que reação deveria ter. a cada degrau, mais culpa eu ia sentindo por nao correr até ele e dizer qualquer coisa que pudesse tirá-lo um segundo daquele transe.
A única atitude que tomei foi olhar pra ele, nao consegui fazer nada nem um pouquinho mais nobre ou útil. Eu só olhei e encarei seus olhos, tão transparentes da bagunça que estava por detrás. E ele me encarou também.
Nunca me senti tao desequilibrada com o olhar de alguém como daquele menino.
Era muito doce, mas tinha tanta angústia quanto, tinha tristeza e súplica e mais ainda sinceridade, tinha dúvidas e algum tipo de calmaria, só nao tinha medo.
Aquele olhar era toda a minha própria essência, talvez por isso que tenha me marcado tanto.
Eu nao parei para perguntar se o menino estava bem, egoísta que sou, continuei subindo os degraus, mais e mais culpada.
Eu me perdi naquele olhar do menino e prendi ele dentro de mim.
a diferença é só o medo que eu sinto sempre e o egoísmo que me invade as vezes.
(e a minha forma torta de me redimir)

domingo, 14 de março de 2010

[pretensão]



Não mexia um centímetro seu corpo. Estava estática e resolvera passar o dia assim, respirando, só. O movimento ela guardava para o interior, afinal, querendo ela ou não, ele não deixaria de existir. A única saída era canalizá-lo para algum outro lugar. Pensou, talvez, que dentro do corpo o movimento cansaria menos. Pretensão.
O ser humano vive cheio de pretensões e ela não era diferente de nenhum deles.
O corpo parado e mudo era também pretensão. Ela estava frenética.
Os olhos baixos, meio fechados e os lábios semi-abertos, como se precisando só de um semi-respiro e uma meia visão para sobreviver. Assim pensava serem todos: respiravam pela metade, sem uma visão de vida, mundo e liberdade completamente formada.
O inteiro, o completo, pretensões. A solidez, pretensão. A integridade, sonho. Até as ilusões estavam pela metade. Se contentavam com a metade da utopia.
Por isso parou (de um lado só). Se não fosse um não seria outra coisa.
Mas parando o lado de fora, o de dentro dobrou a produção. Sentia cada parte daquela dimensão se agitar. O coração mandava duas vezes mais sangue para o corpo. A respiração estava mais rápida, por mais que aos outros não fosse perceptível. Ouvia mais. Sentia mais. Pensava e queria mais.
Precisou parar para se sentir (mais) viva.
Por fora desistiu de ser. Por dentro, finalmente sentiu o um que tanto almejara. Para ela bastou. Não importava se era pretensão ou não.
Ela era o zero e o um simultâneos. Não um meio termo falho entre eles.

segunda-feira, 8 de março de 2010

[de Clarice]

só o que eu preciso.


Por não estarem distraídos (Clarice Lispector)

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."