"Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos."
B.S.



domingo, 29 de agosto de 2010

[sobre a memória]



"Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!" Alberto Caeiro


foi isso que sempre me incomodou.
não sou uma pessoa cheia de rancores, quem me conhece sabe bem.
talvez grande parte disso se justifique pelos problemas de memória que carrego comigo.
admito: eu esqueço as coisas.
eu sei, ninguém guarda tudo e toda aquela coisa.
mas eu esqueço as coisas mesmo.
nao sei bem como funciona, sinto como um bloqueio que me impede a visão.
sou míope memorial. as lembranças ficam embaçadas e por favor, não me peça detalhes de coisa nenhuma, não os enxergo.
antes eu pensava serem só as partes ruins dos acontecimentos, as brigas, os pesadelos. todos eles iam para uma mesma caixinha de chumbo. talvez nao tao pequena assim, mas enfim, estava distante o suficiente para que eu nao as recordasse.
hoje percebi que a maioria das lembranças vão parar por ali. nao me lembro de coisas que queria guardar, acordo como se não tivesse sonhado, repito perguntas nao por nao lembrar as respostas, sim por não lembrar que as perguntei.
é assim, simples.
as vezes penso ser mais fácil, aquele tal sentido de preservação.
nao seria muito eficiente, na verdade, porque poderia cometer os mesmos erros diversas vezes.
mas é sim eficiente quando se tem todo um conjunto de auto-preservações.
só a possibilidade já me dói e afasto-a como se já tivesse perdido tudo novamente.
a dor serve para isso afinal. a dor tem uma memória invejável e manifesta-se sempre em que há a possibilidade de dor. é um aviso.
a dor é toda a minha memória. e afasto toda a minha memória para dentro daquela caixinha.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[estaremos bem se você estiver]


nunca vi uma cena tão bonita, solidária ou que emocionasse tanto como a de ontem. até aqueles que não o tinham conhecido sabiam o quanto ele era especial para o mundo, só de estar ali no meio de toda aquela energia. eu achei que fosse ficar tudo bem, desde o inicio, eu tinha certeza disso pra ser sincera. era só um contratempo que estava demorando um pouco mais para se resolver. mas eu nao me preocupava tanto porque eu sabia que ele ia sair dali todo bonitão com o mesmo bom humor de sempre. e ele saiu. mas foi diferente e tudo ficou meio confuso. a certeza de quem tinha certeza se desfez, nos mostrando mais uma vez nossa impotencia diante da vida e falta de controle dos acontecimentos. nao acredito em deus, céu, inferno, destino. confesso que olhei para cima procurando ele, mas por acreditar em coisas bonitas e o dia estava o mais bonito de todos ontem. o céu azul sem nuvens, a lua aparecendo, nem muito frio nem muito calor, um jardim enorme cheio de flor e muita muita muita gente ali com ele. parecia que o mundo tinha se juntado ali, parado para vê-lo e por mais cética que eu seja, tenho certeza que ele estava acompanhando tudo aquilo. fazia muito tempo que eu nao me emocionava, mas nao tinha como se segurar, nem queria. era nosso agradecimento pra ele, por tudo que ele era para nós. choros e risos se misturavam em meio a lembranças e abraços. eu nao conseguia parar de pensar nele tão bem e tão melhor que todo mundo no mundo. ele era uma pessoa e tanto. me lembrava dele dizendo que estaria bem se eu estivesse. me lembrava das caras que ele fazia em cada situaçao. da paciencia que ele precisou ter com tanta bagunça que é a nossa família. me lembrei ainda de uma das ultimas coisas que ele me falou, logo antes de tudo acontecer, que nao importava se a gente estava longe, longe de distância, porque a gente se amava e ia ficar tudo bem, a gente estaria perto por causa disso. nao foi exatamente assim que ele falou, foi muito mais bonito. mas fiquei com esse não importava na cabeça. e lembrei ainda da ultima vez que o vi, como no final ele que parecia estar cuidando de nós e nao a gente dele. ele sempre cuidou de tudo e ontem foi cada um cuidando um do outro. pessoas que eu nao conhecia, que nao conheciam ele, que nunca imaginaria estarem ali, grupos de lugares muito diferentes, e nós. estavam todos ali por ele, rezando, cantando, chorando, amando. estariamos bem se ele estivesse. e eu tenho certeza que está. bisa vovô papai seu Michel obrigado.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

[as tais expectativas de controle]


eu sento e espero, muitas vezes. eu ou qualquer outra pessoa, veja bem.
nao conheço ninguem que nao queira alguma coisa, que esteja livre de aspirações, sonhos ou fantasias. no minimo, deseja alguma coisa para querer.
eu quero e quero muito, o tempo todo. nao sei ainda o que, mas cada parte isolada de mim precisa tanto que me torno conjunto.
são tantos quereres, uma variedade tao assustadora e doentia de quereres, que todos tornam-se uma coisa só: saudade.
só que nao é uma dessas saudades temporais. nao é essa necessidade de presentear um acontecimento passado. saudade é reviver. reviver nunca passará de uma tentativa frustrada. nada se revive, nunca.
saudade é inevitavel. é expectativa. é um querer que nao pode ser realizado, por isso tao frustrante.
mas não é isso. é um outro tipo de saudade.
na verdade nem o é, mas nao existe alguma outra palavra que possa caracterizar tal sentimento.
alias, pode até ser considerada temporal, mas em relação a uma outra temporalidade.
é novamente uma tentativa frustrada, mas, no caso, de aproximaçao de um futuro já planejado.
se voce quer significa que ainda nao o tem, mas espera ter, de preferencia no instante seguinte.
e voce espera, assim como eu. nós sentamos e esperamos.
mas o futuro nunca chega. futuro é aquilo que ninguem vai conhecer.
a gente finge que pode controlá-lo só um pouquinho porque assim é mais fácil.
acredito que a maior ilusão que temos se refere ao controle. tudo torna-se muito simples se voce pode controlá-lo, é muito cômodo que se exista um cronograma que seja seguido.
as pessoas até que costumam gostar de surpresas, mas abdicam delas em troca dessa segurança do planejamento.
ilusão. nao se tem controle sobre nada. nem sobre si próprio quanto menos de um futuro isento de rumos ou previsões.
mas só se percebe isso quando tudo acontece de maneira diferente do que se tinha pensado. aquela quase certeza de estar prevendo a maneira do acaso de agir se torna frustação quando se percebe que nao havia certeza nenhuma desde o principio.
há uma expectativa muito grande em relação ao controle.
eu mesma tenho várias. espero muito sempre e o tempo todo, como disse. me frustro sim, é verdade.
mas nao me frustro de tal maneira que nao possa aproveitar as delicias das adversidades.
é inevitavel criar fantasias de como será o encontro ou a despedida, a conversa, realidades paralelas, crio-as sempre. mas sei que serão diferentes.
nao necessariamente melhores ou piores. só diferentes. e isso até que me faz bem.
como seria se todos tivessem controle sobre vidas alheias?
se alguem fizesse um script de suas falas e atos para que condizessem com a vontade dela própria?
nao. seria assustador.
me faz bem saber que apesar de tudo as coisas acontecem sempre, dá-se um jeito, nao importa de que maneira.
uma única surpresa, por menor que seja e que te faça feliz, é tantas vezes melhor do que um cronograma inteiro da sua vida que dê certo para você.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

[as tais características]


nunca tive nenhum talento especial. minha familia inteira o tem, por isso tal constatação me perturbava de vez em quando. são artistas. eu não.
nao desenho e nao canto. não toco nenhum instrumento, danço aquele pouco. e só.
ser um pouco mais afinada seria divertido, confesso, mas nao me preocupo mais com isso.
decidi que nao ia levar pro lado pessoal, assumi a minha própria ofensa como uma característica e só.
sou cheia de características, graças a deus.
uma delas é que nao acredito em deus, ou em coisa nenhuma, mas nao vem ao caso agora e nem importa tanto assim na verdade. mas assumo isso como uma caracteristica.
nao sei como classificar defeitos e qualidades. para mim os dois conceitos se confundem e assumem um nome não tão cheio de preconceitos.
cada conceito, separadamente, carrega a carga do julgamento, mesmo que você nao o veja ali nas entrelinhas.
quem seria moralmente capaz de classificar postiva ou negativamente aspectos de outrem?
essa resposta não existe. primeiro porque nao acredito em perfeição.
segundo que, se acreditasse, certamente o perfeito seria um equilibrio entre positivos e negativos.
além do mais, talvez o tal defeito de um fosse justamente o charme do outro. tal classificação se mostra muito falha.
quando denominados de características podem causar menos constrangimentos.
falando por experiencia própria, é uma delicia assumir cada uma de suas características.
obviamente, aquelas mais dificeis de se assumir. é assim que voce vai descobrindo outras e outras e outras e mais algumas.
é assim que voce se descobre, descobre o outro e deixa que ele o descubra também.
e durante esse processo tao cheio de descobrimentos, voce ganha um bocado de paciencia.
se é mais tolerante com erros alheios dado que se percebe que voce faz igual.
uma caracteristica bastante comum é o tal olhar de reprovaçao.
reprova-se os próprios atos, quando outra pessoa que os faz.
reprova-se as próprias vontades e desejos olhando para alguém que os conseguiu satisfazer.
julgamentos me incomodam.
me incomoda saber que como qualquer pessoa eu também os faço, não estou acima de nada disso.
assim como não possuo nenhum talento especial. possuo características.

domingo, 1 de agosto de 2010

[sorrir]


nada me faz tão bem quanto um sorriso espontâneo.
é quase um reflexo, tão inevitável quanto a própria respiração.
a pessoa que sorri é a que mais se surpreende com essa falta de controle do próprio corpo.
sorrir é não ter controle.
não importa o quão fechado dentro do próprio mundo, o sorriso é o buraco da fechadura que os mais enxeridos espiam.
é o segundo entre a explosão e regeneração da bolha que o separa do resto do mundo.
a inexpressividade de alguém ou a não demonstração de emoções se mostra falha dado que, mesmo que raro, o sorriso aparece no canto da boca.
para mim, não são os olhos a janela da alma. os olhos sabem mentir quando treinados.
um olhar nos prende e qualquer coisa se torna válida para nós, a partir daí.
não um sorriso.
um sorriso falso, por mais autêntico que possa parecer, é sempre detectável.
o espontâneo é tão obviamente verdadeiro que é uma delícia receber um. é inesperado e sincero. jamais se duvida de um dado que não é possível uma cópia.
sempre guardei comigo os sorrisos que recebi, como uma fotografia.
deixei de acreditar em tantas coisas, tenho dúvidas de tantas outras.. sou uma pessoa cética em muitos aspectos, confesso.
mas sempre acreditei nos sorrisos.
sorrisos são os nossos segredos que aparecem de vez em quando.
é o meu jeito de, sem querer, me livrar um pouco dessa carga que o mundo nos larga nas costas.